Crédito: Acervo IMS
História e Transculturalidade é o tema geral do III CIJI, no Recife, em 2025. A temática geral – Judaísmo e Interculturalidade – que dá título e sentido à iniciativa, desde a sua primeira realização em 2022, permanece a mesma, mas desdobrando-se, expandindo-se.
Transculturalidade é um grau a mais da relação entre as culturas, derivado diretamente de transculturação. Ambos estão relacionados com a interculturalidade, e esta, por sua vez, com outras terminologias similares.São tentativas de situar e entender as vias da identidade e alteridade.
Quanto à História, vale sempre sublinhar que Pernambuco figura, há séculos, como um dos mais importantes pontos de chegada, residência e convivência de judeus. Provenientes de dois grandes ramos quanto à origem: sefarditas (da Península Ibérica); e asquenazes (Europa Central e do Leste).
Um dos capítulos mais notáveis da presença judaica no Brasil nos conduz a Pernambuco do século XVII. Precisamente no contexto da invasão e ocupação neerlandesa, dentro do projeto da Companhia das Índias Ocidentais (em neerlandês: West-Indische Compagnie, ou W.I.C.).
Os judeus que moraram no Recife nesse período vivenciaram intensamente os vinte e quatro anos de domínio neerlandês. Período de relativa tolerância, de interação cultural, mas também de constantes conflitos. O intervalo mais interessante foi aquele em que esteve Pernambuco governado pelo alemão Maurício de Nassau, a serviço da W.I.C.
Em 1973, um notável livro que reuniu a reprodução das obras de Frans Post saiu editado por iniciativa do embaixador Joaquim Sousa Leão Filho (1897-1976). Trabalho pioneiro, que antecedeu em décadas o catálogo raisonné preparado exaustiva e excelentemente pela Capivara.
O livro de Sousa Leão foi resenhado no Diario de Pernambuco, em 13 de maio de 1973, pelo jornalista e pesquisador Marco Aurélio de Alcântara. Ele diz:
“Trata-se de uma edição de muito bom gosto gráfico, impressa na Holanda, e distribuída simultaneamente nos Estados Unidos, por Abner Schram, de Nova Iorque, e a Livraria Cosmos, no Rio. Para o Brasil, foram reservados apenas 300 exemplares, dos quais 5 chegaram a Pernambuco, na última semana, para o cônsul dos Países Baixos, José Paulo Alimonda, Marcelo Carneiro Leão, Teóphilo Serur Filho, Maria Peretti e o autor destas notas, rubricados e numerados pelo autor.”
Um dos pontos que o comentador destaca é o dos judeus em Pernambuco:
“Naturalmente, o embaixador Sousa Leão não se aprofunda na figura de Nassau em seu relacionamento com Frans Post e apenas faz referências às ligações financeiras do Príncipe com os judeus de Pernambuco. Mas talvez se possa deduzir que o príncipe procurou sempre um equilíbrio de interesses entre os fidalgos da terra de descendência portuguesa e os arrivistas, inclusive judeus ‘sefarardim’, que vieram com os conquistadores holandeses e dominaram o comércio exportador da colônia, comprando açúcares aos senhores de engenho e mesmo antecipando empréstimos à conta da produção.”
O artigo de Alcântara é esclarecedor, quase didático. Ele aproxima o leitor comum do tema, explicando, coloquialmente, o sentido daquela W.I.C.: “uma espécie de IAA e Banco do Brasil”. Lembra que os senhores de engenho viviam um stress financeiro e em revolta crescente, sentindo-se espoliados pelos invasores. “A tal ponto que frei Manuel Calado, no seu livro O Valeroso Lucideno ou o triunfo da liberdade em Pernambuco dizia andarem os cristãos novos ‘em tratos e mofatras’.”
Alcântara lista os nomes dos principais interessados e que levaram vantagem com a expulsão dos holandeses e dos judeus. Justamente os chefes da Restauração Pernambucana: Fernandes Vieira, Camarão, Vidal de Negreiros e Henrique Dias. Ele informa do que eles se aproveitaram:
“Dos imóveis abandonados, como se pode ver pelo Inventário das armas e petrechos bélicos deixados pelos holandeses em Pernambuco’, onde estão listados os prédios que eram dos cristãos novos no bairro do Recife e Mauristadt. Henrique Dias, um dos grandes beneficiários materiais da Restauração Pernambucana, ficou com toda a Campina dos Coelhos, inclusive a área do antigo cemitério dos judeus (Jodenbegrafplatz), onde, hoje, se ergue, segundo a tradição, o Hospital Pedro II.”
Em Pernambuco os estudos de História mais abrangentes e rigorosos foram os de José Antonio Gonsalves de Mello e Evaldo Cabral de Mello.
Vale a pena mencionar, a voo de pássaro e esparsamente, alguns comentaristas do passado que se ocuparam dos judeus, bem como outros que vêm divulgando os seus estudos muito recentemente.
Um exemplo é o desta notícia publicada no jornal A Província, em 1919:
“Uma comissão de judeus nos procurou para pedir que, aproveitássemos a passagem por aqui, do nosso embaixador na conferência de Versailles e levássemos a S. Excia. a aspiração secular do grande povo disperso: a reconstituição da sua nacionalidade. o ‘sonho palestiniano’ é uma ideia vitoriosa entre as personalidades proeminentes aliadas. Lloyd George e Wilson já o prometeram. É uma garantia. Mas é preciso que essa garantia encontre o amparo coletivo das embaixadas.”
Três anos depois disso, continuava a ‘campanha’ nos jornais locais de Pernambuco. Um exemplo é o artigo “Pela Palestina”, publicado em 17 de novembro de 1922, também em A Província, e assinado por Joaquim de Oliveira. Ele começa por uma indagação, a modo de epígrafe:
“Que é feito dos descendentes de Abraham e Jacob? O povo de Israel, tão sábio e valente, essa raça da qual nasceram os profetas, essas tribos que imortalizaram o nome dos seus chefes, onde existem? Qual é o ponto da terra que ocupam? Onde se acha o seu lar doméstico? Qual é a sua pátria?”
O próprio articulista pergunta e responde:
“Qual é a sua pátria?! A Palestina!
“Conseguido de há pouco na Liga das Nações o protetorado britânico sobre a Palestina, os israelitas tratam agora da restauração da pátria. Já o dissemos das colunas deste jornal em artigo publicado no dia 26 de agosto. Para a consecução do seu nobre desiderato, todos eles por toda parte, se obrigaram a, de acordo com a comissão central de construção dessa outra Palestina (outra, apenas na fisionomia material; sempre, porém, aquela Palestina eleita da natureza, ‘fermosa e poética rainha da Ásia’), se obrigaram, dizemos, a subscrever determinada importância o período de cinco anos.
“Com esta subscrição prepara aquela comissão um fundo econômico com que vem fazendo face as despesas das obras materiais da Palestina e a subsistência dos judeus refugiados da Ucrânia. Tem, pois, esse fundo econômico dupla feição apreciável: patriótica e humanitária.
“A colônia de Pernambuco, nobre e distinta colônia, dum amor e duma adoração inexcedíveis pela sublime terra de origem, é claro, participa dessa subscrição.”
Num artigo datado de Bogotá, maio de 1925 – portanto, há um século da realização deste CIJI – e publicado no Diario de Pernambuco, em 7 de novembro de 1925, Argeu Guimarães faz um repasse seguro da história dos ‘judeus na américa’.
Ele menciona personagens que merecem ser mais bem conhecidas pelas novas gerações:
“Levy Montesinos, que morreu no Recife, em 1646, Menasseh, teólogo e filósofo hebreu, como ele mesmo se intitulava, dedicou o seu livro a alguns patrícios notadamente ao rabi Joseph da Costa, deputado Parnassim do Kaaba Kadosh de Israel, ascendente do escritor que nos propina a suma destas linhas. Era porventura parente do célebre Uriel da Costa, cristão novo renegado mais tarde na Holanda. Fez-se materialista, saduceu convicto, enforcou-se em Amsterdam, e a sua grande obra Exemplar humane vitae, traduzida ao vernáculo por Epiphanio Dias, atesta a constante inquietude e volubilidade do seu espírito.
“Mereceria mais detido estudo a ação dos judeus em Pernambuco. Escrevendo a Mário Melo, prestimoso confrade e brilhante espírito do Recife, esclarece-nos ele que o assunto da expatriação dos holandeses por serem judeus ou cristãos novos ainda não foi devidamente explorado. Refere-se ao livro de Solidônio Leite Filho, que mais trata dos judeus de Portugal. Depois de expulsos os invasores, os israelitas do Recife tiveram um prazo curto para liquidar negócios, e trataram de sair, porque se ficassem cairiam também nas garras da inquisição. (…) O estudo fica apenas delineado. É sobremodo interessante, pela projeção dos judeus de pernambucano por toda a américa espanhola.
“O sangue semita que corre pelas veias das repúblicas irmãs leva assim alguns possíveis glóbulos do nosso sangue e, sobretudo, perdura no sentimento dos judeus hispano-americanos alguma coisa que exprime a saudade da nossa terra, da nossa gente, da nossa língua.”
Transcorrida década e meia, lemos esta nota no Diario de Pernambuco, em 1946, ano que marca a nova Constituinte brasileira, no processo de redemocratização, após vários anos sob ditatura:
“A colônia israelita do Recife promove, amanhã, uma festa artístico dançante, a fim de angariar donativos para os seus irmãos da Europa que escaparam ao cataclisma nazista. Um apelo foi dirigido a todos os judeus de Pernambuco pedindo colaboração e contribuições para a altruística festa. O baile realizar-se-á nos salões do centro israelita.” Da programação, além das músicas e danças, houve uma conferência sobre Chvuoth por Clara Chvarts. (Ver Diario de Pernambuco, 6 de junho de 1946)
Recentemente, a Companhia Editora de Pernambuco lançou uma alentada história dos judeus em Pernambuco, da autoria de Jacques Ribenboim. Essa mesma editora tem no prelo duas outras obras em torno da cultura judaica e seus expoentes, respectivamente, de Rosa Ludermir e Caesar Sobreira.
Nessas e noutras novas pesquisas há ‘semillas’ de transculturalidade, que, como já disse, estende aquela transculturação proposta pelo espanhol Fernando Ortiz. No seu livro Racismo elegante, o antropólogo José Antonio González Alcantud comenta o encontro de Ortiz e Malinowski, em que a transculturação esteve no centro da conversa. Este trecho é de passagem de um livro de José Juan Arrom por Alcantud citado:
“Nessa noite discutiram e deram um nome ao que ainda hoje se chama aculturação. Dom Fernando declarou que não se tratava apenas de aculturação, mas que era uma via de mão dupla. As palavras exatas foram: ‘é um dar e receber’. Trata-se de transculturação. Ambos os lados dão de si próprios, influenciam o outro e acabam por ter uma visão mais respeitosa de ambos.”
O conceito de transculturação floresceu numa das épocas mais difíceis e trágicas para os judeus – a de 1940 (tempos da II Guerra, iniciada no penúltimo ano dos anos 1930). A década de 1940, por outro lado, tem um significado positivo: a criação do Estado de Israel, em 14 de maio 1948.
Conforme explicou Ortiz, a transculturação costuma acontecer por meio de processos migratórios, políticas de poder oficial e pela influência dos meios de comunicação. Representa uma superação do conceito de ‘aculturação’, tão em voga então nos Estados Unidos, e no Brasil. Dizia Ortiz:
“Entendemos que el vocablo transculturación expresa mejor las diferentes fases del proceso transitivo de una cultura a otra, porque éste no consiste solamente en adquirir una distinta cultura, que es lo que en rigor indica la voz angloamericana acculturation, sino que el proceso implica también necesariamente la pérdida o desarraigo de una cultura precedente, lo que pudiera decirse una parcial desculturación, y, además, significa la consiguiente creación de nuevos fenómenos culturales que pudieran denominarse de neoculturación.”
Seja em si, seja na sua relação com a aculturação, desculturação e neoculturação, a transculturação nos leva a um campo de grande complexidade e extensão. Até chegarmos à transculturalidade, esteio fundamental das culturas contemporâneas, com múltiplas identidades, diversidades intrincadas e imbricadas, e os seus tantos entrelaçamentos e penetrações. Tanto no nível macro das culturas (especialmente nas híbridas, como as brasileiras) como no nível micro (o âmbito individual).
Wolfgang Welsch, um dos principais teóricos da transculturalidade, a situa no quebra-cabeças de formas de cultura. Ele discute inter, multi e transculturalidade.
Assuntos assim cada vez mais na ordem do dia, num mundo em que conceitos como geopolítica e geocultura se conectam, estão em discussão no III Congresso de Judaísmo e Interculturalidade. No Recife, de 26 a 28 de maio de 2025. Uma boa oportunidade para, sincrônica e diacronicamente, trocar ideias sobre alguns dos tantos aspectos relevantes de um tema inesgotável: a cultura judaica, em si, e as suas relações com outras culturas, no presente, no passado e no futuro.
Mais do que um enfoque meramente histórico, este eixo sinaliza a possibilidade de discussão sobre as nomenclaturas, os clichês, as tentativas por vezes estereotipadas de fixar almas e culturas, como no mito de Ahasverus. Situa-se neste eixo os diversos subtemas que englobam a ideia geral de Identidades, Diversidades, no âmbito das ciências sociais, seja no aspecto individual, seja coletivo.
Popularizou-se no Nordeste brasileiro e em outros lugares a ideia de “tradições de família” e costumes associados à comunidade sefardita. Contudo, entre o ato e o fato existem aspectos que necessitam ser bem esclarecidos. Por meio deste eixo histórico-antropológico pretende-se demonstrar as aproximações entre cultura e história do cotidiano. Sem limitar-se este eixo a abordar apenas o Brasil, tampouco restringir ao contributo cultural sefaradita. A pluralidade do judaísmo na história da humanidade, e a sua presença em todos os continentes é já um estímulo para as visões e interpretações do judaísmo busquem também enfoques multifários.
Os personagens da História e da Literatura dos judeus são tão antigos, perenes, ricos, diversificados e abrangentes quanto a própria humanidade. Expressões do pensamento filosófico, científico, literário, artístico e religioso, em suas múltiplas faces. Vário são ortodoxos, cabalistas, messiânicos, seculares, ateus, em suas formas de pensar, crer e viver. Juntos ou separados atestam a liberdade e a variedade das culturas. A partir deste eixo pode-se demonstrar a riqueza das crenças, dos mitos, das lendas, dos escritos sagrados, dos misticismos, das elaborações artísticas, dos costumes, dos ritos, das cerimônias, das celebrações, das festas, dos simbolismos numa gama múltipla de caminhos.